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PLUM ISLAND- EUA:A ILHA DO TERROR





Já era a quinta vez que Bashiruddin Mahmood era reprovado no detector de mentiras. Físico nuclear educado no Ocidente e reverenciado no Paquistão, onde alavancou o programa de energia atômica, ele tivera um de seus telefonemas interceptados, em outubro de 2001, pela Agência Central de Inteligência (CIA). Do outro lado da linha estava um dos homens mais procurados do mundo: o líder do Talibã, mulá Omar.

Após falhar no polígrafo pela sexta vez, ele admitiu ter se encontrado com o mulá Omar e com Osama bin Laden – a última vez um mês antes do 11 de setembro. Após a confissão, agentes da CIA vasculharam a casa de Mahmood. Encontraram livros de sua autoria (como Mecanismos do Juízo Final e Vida Após a Morte), um documento intitulado Bactéria: O Que Você Precisa Saber, e um dossiê sobre o Plum Island Animal Disease Center, um centro de pesquisas de doenças animais em uma ilha na costa leste dos Estados Unidos.

Se nunca ficou provado que o Talibã tinha intenção de sabotar o complexo e liberar uma série de vírus em território americano, o episódio serviu para chamar a atenção para uma das instalações mais polêmicas do governo americano. Criado depois da Segunda Guerra com um fim claro – a produção de armas biológicas –, o laboratório completa 56 anos de confusões e descaso ao lidar com alguns dos germes mais perigosos da Terra. É o que conta o pesquisador Michael Christopher Carroll em seu livro Lab 257 – The Disturbing Story of the Government’s Secret Plum Island Germ Laboratory (“Laboratório 257 – A Perturbadora História do Laboratório Governamental Secreto de Germes de Plum Island”, inédito no Brasil).

Moldes nazistas

O centro de pesquisas americano foi desenhado por ninguém menos que o criador do laboratório de armas biológicas da Alemanha nazista, Erich Traub. Em 1949, refugiado nos Estados Unidos, ele projetou as instalações nos moldes do laboratório nazista que construíra no mar Báltico 15 anos antes, sob ordens diretas de Heinrich Himmler, segundo-em-comando de Adolf Hitler.

Em plena Guerra Fria – os soviéticos haviam pouco antes detonado sua primeira bomba atômica –, destruir o suprimento de comida do inimigo era idéia fixa de alguns generais. É aí que entra o Departamento de Agricultura americano, que buscava um local (“separado do continente por águas profundas e sem ligação por ponte ou túnel”, como determinava o Congresso) para estudar doenças exóticas. O Estado-Maior sugeriu que o departamento dividisse com o Exército a Plum Island, uma ilha de praias desertas, com pouco mais de 3 quilômetros quadrados, a três quilômetros de Long Island, no estado de Nova York.

Convite aceito, cientistas civis e militares passaram a investigar meios de proteger o gado americano de bactérias estrangeiras, enquanto manipulavam germes para devastar os rebanhos da União Soviética. Durante cinco anos, criaram germes e bactérias a partir de situações militares. Foram preparadas amostras acabadas de 134 classes de 14 vírus diferentes, além de diversas bactérias. Entre as amostras, estava a Febre de Rift Valley, que causa hemorragias fatais e ainda hoje não tem cura ou vacina, a peste suína africana (a chamada “cólera suína”), a peste bovina e a febre aftosa, doença que mais produz perdas econômicas hoje. Mas a menina-dos-olhos da equipe eram 12 ampolas de carbúnculo – ou antraz –, a arma preferida dos atuais bioterroristas, que mata 90% das vítimas em até sete dias. A quantidade desse pozinho branco produzida na ilha ao lado da maior concentração populacional dos Estados Unidos poderia matar 1 milhão de pessoas.

Oficialmente, a produção de bombas biológicas como essas durou até 1954, quando o Exército resolveu tirar o time de campo. O Estado-Maior concluíra que acabar com toda a comida do inimigo não era uma idéia tão brilhante: vencida a guerra, restariam milhões de bocas soviéticas para alimentar. Os Departamentos de Defesa e de Agricultura fecharam um acordo e a missão de Plum Island passou a focar apenas o potencial defensivo dos germes. Nada de armas biológicas, cuja produção alcançara ouvidos da imprensa e assustava a população. A nova cara da ilha era a do laboratório “mais seguro do mundo”.

Em 26 de setembro de 1956, a ilha foi aberta ao público. Diante de uma platéia de ambientalistas e jornalistas, o então diretor, Maurice Shahan, detalhou a todos as rígidas normas de segurança. Primeiro: os testes com os animais só ocorriam em ambientes isolados hermeticamente, já que um único inseto em contato com as cobaias poderia desencadear uma epidemia. Todos os empregados tomavam banhos de descontaminação assim que saíam do laboratório. E muros de mais de 3 metros de altura cercavam o complexo, patrulhado 24 horas por dia por homens armados.

Segurança total?

Plum Island tinha então 350 funcionários e funcionava a todo o vapor. Um antigo depósito do tempo dos militares tornou-se o “Laboratório 257” (número do prédio onde ficava), onde ocorriam as principais análises de inoculação de germes em cobaias e posterior dissecação. Além disso, a administração conseguiu obter 7 milhões de dólares para a construção de um segundo centro de pesquisas, o Laboratório 101.

Se a comunidade já dormia tranqüila, a imprensa continuava curiosa sobre o que acontecia na ilha. Em 1971, o porta-voz do governo, James Reynolds, disse a um repórter local que os trabalhos tinham como propósito “a criação de defesas contra nações utilizando armas biológicas”. A afirmação ia contra a linha oficial do Departamento de Agricultura, que negava a utilização militar dos trabalhos. Mas a matéria saiu no jornal local e foi distribuída para todo o país pelas agências de notícias.

O diretor era então Jerry Callis, que fizera parte da equipe de Shahan e dali para frente teria muita dor de cabeça. Um congressista democrata descobriu que germes trazidos de outros países para estudo eram transportados pelo continente todos os dias, contrariando a autorização do Congresso para que isso ocorresse só em casos especiais. Em 1977, citando diversas fontes, dois repórteres do jornal Newsday acusaram a CIA e o Exército de estarem ligados a um surto de peste suína africana deflagrado em Cuba seis anos antes. Não se sabe se alguém do Departamento de Agricultura estava envolvido. Mas como o próprio governo admitira, o vírus da peste suína africana estava disponível em um único lugar na América: Plum Island.

Na manhã de 15 de setembro de 1978, um assistente de pesquisas chamado Billy Doroski ia preparar dois bezerros para testes (ou seja, inoculá-los com alguma doença) quando os encontrou espumando pela boca. Recuperando-se da bebedeira da véspera, Doroski demorou a entender que os animais já haviam sido contaminados. Exames confirmaram que um vírus de febre aftosa escapara do laboratório 101.

Antes de descobrir a causa do problema, os funcionários tiveram que realizar um espetáculo macabro: destruir toda a fauna da ilha. Em fila indiana, os animais eram mortos com um disparo de ar comprimido, retalhados com motosserras e incinerados. Em dois dias, queimaram 94 cabeças de gado, 87 porcos, 28 coelhos, 27 galinhas, 13 bodes, seis cavalos, seis ovelhas e dois patos. Depois que o fogo baixou, uma investigação interna constatou várias irregularidades, inclusive filtros tão mal-instalados que poderiam ser atravessados em um mesmo instante por 750 mil vírus.

A febre aftosa não se espalhara para outras fazendas da região, mas as negligências continuariam no dia-a-dia de Plum Island. Até o chefe tratava de dar o mau exemplo. Em 1982, no melhor estilo Homer Simpson em seu trabalho na Usina Nuclear de Springfield, o diretor Callis “esqueceu” uma amostra de vírus por três dias em sua casa. O descuido do diretor, que foi aposentado forçosamente, rendeu uma sugestão da Academia Nacional de Ciências: era “momento de reconsiderar o futuro de Plum Island”, cujas instalações se mostravam “precárias na melhor das hipóteses”.

Apesar das queixas de precariedade, o novo diretor, o britânico Roger Breeze, tratou de espremer o orçamento do laboratório, identificando e eliminando gastos considerados inúteis. Em 1991, demitiu quatro dos principais cientistas e anunciou a privatização dos serviços de suporte. Também mandou embora outros 75 funcionários no mesmo dia. A brigada de incêndio de cinco bombeiros passou a ser composta por voluntários; e os 34 guardas que patrulhavam a ilha reduziram-se a um.

O resultado dos cortes não só piorou a segurança e os equipamentos arcaicos do laboratório como fez as notícias negativas do local virem à tona. Indignados com as novas condições de trabalho, os funcionários que restaram passaram a divulgar todas as picuinhas sobre o local. Pipocavam denúncias anônimas sobre vazamentos de produtos químicos contaminados e funcionários contraindo doenças misteriosas. Inspeções de agências de proteção do meio ambiente apontaram 263 violações de segurança biológica – 67 delas potencialmente fatais – e resultaram em mais de 100 mil dólares em multas. Logo Plum Island estaria bem perto do olho do furacão.

Mar de germes

O nome do furacão era Bob e ele apareceu no dia 17 de agosto de 1991, com ventos de 160 quilômetros por hora. Havia deixado em pânico a família do engenheiro de manutenção Phillip Piegari, que desembarcou em Plum Island pouco antes da meia-noite para o plantão da madrugada. Tudo ocorreu normalmente até meia hora antes do fim do turno de Piegari. Às 7h30, com o mar agitado, ficou claro que a barca que traria os novos plantonistas não chegaria. Nesse instante, um blecaute atingiu a ilha. O gerador entrou em ação, iluminando o complexo – exceto o laboratório 257, que deveria receber energia de um cabo subterrâneo que queimara havia três meses e não fora consertado.

Dentro do 257, a escuridão era total, já que, lá fora, a tempestade transformava o dia em noite. Munidos de lanternas, Piegari e seu colega Stanley Mickaliger inspecionavam a estação de tratamento de esgoto, no andar térreo. De repente, sentiram algo pegajoso sob os pés. O tanque transbordara e o chão estava coberto com dejetos de animais. Não só fezes e urina, mas sangue, vômito, pus, e sabe-se lá que germes misturados a tudo isso. Controlando a náusea, os dois tentavam desesperadamente transferir parte do conteúdo para um tanque secundário – quando o esgoto jorrou em cima deles, que não usavam máscaras de proteção.

Por todo o prédio, alarmes ecoavam anunciando mais uma emergência em algum canto escuro. Quando a sirene dava uma brecha, podia-se ouvir os gemidos guturais dos bichos presos ali. A área deveria estar completamente lacrada, mas para inflar com ar comprimido as peças de borracha que garantiam a vedação era preciso energia elétrica. Pior: os congeladores que abrigavam a 15ºC negativos amostras de vírus mantidas em estado de hibernação, também ficaram comprometidos. Com o blecaute, a temperatura subiu, e os vírus começaram a se multiplicar. A eletricidade era vital para Plum Island. Sem ela, não havia contenção biológica possível.

Em meio ao mar de germes que se instalara no 257, os homens assistiam, impotentes, aos mosquitos e mariposas voarem livremente. Um mês depois, Phillip Piegari, Stanley Mickaliger e outros que haviam participado do “plantão do inferno” foram comunicados que, devido a cortes de gastos, seriam dispensados. Nos anos seguintes, Piegari e Mickaliger sofreriam doenças que nenhum médico conseguia diagnosticar. O primeiro tinha enjôos constantes e fortes dores de cabeça; Mickaliger padecia de uma artrite terrível. Eles tentaram provar que os sintomas resultavam das condições insalubres do antigo local de trabalho, mas não tiveram sucesso.

Em 1995, o diretor Roger Breeze deixou Plum Island por uma proposta mais vantajosa. Desde então, novos diretores chegaram e foram embora, funcionários entraram em greve, e, na esteira do 11 de setembro, o presidente George W. Bush tirou o centro de pesquisa da pasta da Agricultura, transferindo-o para o Departamento de Segurança Interna. Hoje, o futuro do laboratório que já foi chamado de o mais seguro do mundo é uma incógnita. Que pode ser equacionada por cientistas íntimos do terrorismo como o físico nuclear Bashiruddin Mahmood.


Os 56 anos de experiências secretas, má administração e acidentes do laboratório que produziu vírus e bactérias para serem usados como armas de guerra pelos Estados Unidos