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SOCIEDADE HIPÓCRITA

A morte do menino Rafael Mascarenhas, filho da famosa atriz global Cissa Guimarães é um caso revelador.

Demonstra, em primeiro lugar, a urgente necessidade de se extinguir a Polícia Militar do Estado Rio de Janeiro. É preciso derrotar o banditismo desta corporação e reconstruir o órgão de segurança pública sobre fundamentos que não sejam o da violência, da pobreza, do não-diálogo e da corrupção. A truculência da corporação policial chega, finalmente, aos olhos da também corrupta classe média, que de tanto menosprezar a urgência em modificar-se a política de segurança pública do Rio de Janeiro, acabou mais uma vez, agora de forma muito simbólica, vítima dela.

 

Demonstra também a qualidade da criação que os pais da classe média dispensam a seus filhos. Rafael de Souza Bussanra, atropelador do xará Rafael Mascarenhas, é nada menos que um assassino. Depois de 25 anos de uma formação torpe, certamente norteada pelos valores do consumo, do prazer, da inconsequência, da impunidade e do descaso com o próximo, o assassino resolveu se divertir mais uma vez acelerando seu carro pelo túnel interditado onde, numa demonstração inequívoca de falta de inteligência, calculou não haver ninguém. Atropelou violentamente um jovem que se divertia de maneira inocente – ainda que os burocratas venham dizer que ali não poderia estar. De fato, olhando objetivamente para o lado jurídico da questão, não poderia. Mas é ridículo pensar a lei como uma instância objetiva de poder, assim como seria ridículo condenar jovens que se divertem andando de skate em lugares vazios sem ameaçar a vida de ninguém, exceto de trogloditas inconscientes em seus carros de luxo. Mais brutal ainda que tudo isto, é a recusa do pai em assumir, de uma vez por todas, que realizou um péssimo trabalho na educação de seu filho. As escolas particulares, os empregados, os presentes caros e as passagens para os paraísos do mundo não são suficientes. É bom que os ricos deste país percebam que quando falta o afeto, a crítica, o questionamento, a criatividade, a dificuldade e a compaixão, nascem monstros no lugar de filhos. Tentou, também de maneira estúpida, esconder as provas do atropelamento, novamente encolhendo a responsabilidade do filho em relação ao mundo e ratificando ao adulto – não é jovem, não é rapaz, não é menino, é adulto – seus valores deturpados de justiça, solidariedade e respeito. Em bom português, um perfeito imbecil.

Mais importante do que tudo isso, no entanto, é o que o crime revela em relação à mídia no Brasil. Tratamos até agora de um caso isolado, de um rapaz atropelado por um homem num túnel da Zona Sul do Rio de Janeiro. Repito a manchete sem a personalização: “Rapaz atropelado por carro em alta velocidade em túnel da zona sul” – não chega a ser comovente, dado o teor do jornalismo horroroso que se pratica nas redações. O azar do atropelador é ser a vítima filha de quem é. Não sei quantos jovens havia no local, mas fosse outro a vítima e o caso não seria tão grave. Parece fascista, não? Pois é a prática da mídia brasileira, fascista por excelência e dissimulada por opção. Comprovo tamanha desumanidade:

No dia 26 de julho de 1990 ocorreu no Rio de Janeiro a Chacina de Acari. Onze moradores da Favela de Acari (que fica logo ali no início daquela Avenida chamada Brasil) foram sequestrados por supostos policiais e desde então nunca mais foram vistos. Entre as vítimas, estavam 8 jovens com idade igual ou inferior a dezoito anos. São eles: Viviane Rocha, 13 anos à epoca; Cristiane Souza Leite, 16 anos à época; Wudson de Souza, 16 anos à época; Wallace do Nascimento, 17 anos à época; Antonio Carlos da Silva, 17 anos à época; Luiz Henrique Euzébio, 17 anos à época; Edson de Souza, 17 anos à época; e Rosana Lima de Souza, 18 anos à época. Além dos jovens, também são vítimas Moisés dos Santos Cruz, Luiz Carlos de Vasconcelos e Edio do Nascimento, então com 31, 37 e 41 anos respectivamente. Suspeita-se também que o assassinato de uma das mães em 1993, que pressionava o poder público por uma investigação, tenha sido uma vingança. O caso está de volta à mídia, ainda que de maneira discreta, porque após 20 anos de inatividade da justiça, o crime prescreveu. Explico: o Estado perdeu o direito de punir os culpados. Funciona para a lei como funciona para a sociedade. O decurso do tempo apaga da consciência social os graves delitos que são cometidos na sociedade e ignorados pelo Estado.

Embora se trate da morte de 11 pessoas, num crime que se arrasta há 20 anos sem solução, a mídia prefere dar destaque ao caso do filho da atriz global. A personificação, velha estratégia do jornalismo de mercado para gerar reconhecimento e alavancar a venda dos periódicos, dita a política de manchetes das grandes agências produtoras de notícias. Pois digo uma coisa: a vida do filho da atriz não vale mais do que a vida dos jovens mortos em Acari. Não vale mais do que a vida dos 21 jovens assassinados em Vigário Geral, crime do qual estão absolvidos vários do policiais militares participantes. Torço para que o assassino de Rafael Mascarenhas seja julgado e preso, mas torço ainda mais pela resolução destes outros crimes que cito por simples comparação. Não por minha predileção pelos jovens pobres e vítimas de condições de vida absolutamente injustas, cujos detalhes não posso narrar (embora não negue esta preferência), mas por considerar que uma vida é sempre igual a uma vida, e por entender, num simples raciocínio matemático, que 11 ou 21 serão sempre mais que um.

Não tenho nada contra a atriz Cissa Guimarães. Pelo contrário, respeito muito o seu trabalho mas sobretudo respeito e me solidarizo com sua dor de mãe. Não posso sequer imaginar o que significa perder um filho e torço, como o faria por qualquer mãe, por sua recuperação. Não respeito, no entanto, o circo que se ergue sobre a morte de seu filho – inclusive numa demonstração de enorme desrespeito à dor e à privacidade da mãe – e nem a espetacularização de um crime que, em termos absolutos, é muito menos grave que muitos dos que ocorrem todos os dias com pessoas de menos sorte financeira, social, cultural e política. Repudio ainda mais esta conduta por saber que, muito acima da solidariedade com a atriz, está o compromisso com a venda do jornal. Se apropriar da dor alheia e sofrer junto é um hábito que devíamos cultivar em nossa sociedade, a com-paixão, a solidariedade. Se apropriar de um sofrimento tão gigantesco, tão avassalador e tão pessoal por conta de interesses escusos e que não dizem respeito ao bem estar de ninguém, isto é fascismo em sua melhor definição.